Coluna Histórias e Estórias – Por Chico Lelis

 

Confissões de um Fuscão

“Nunca me esqueço. Saí da concessionária, em Santos, no dia 30 de novembro de 1971, às 16 horas. Levava comigo, no porta luvas, a nota fiscal de venda, número 1012. Estava “zerinho”, brilhando, na então atraente Verde Guarujá, Meu motor, 1.500, roncava macio e gostoso. Por dentro oferecia conforto e por fora chamava a atenção de muita gente, Não esqueço a minha primeira placa: WH 1640, como era antigamente, muito antes dessa atual, que tirou a personalidade das nossas cidades.

O meu dono, seu Manuca (Manoel Pina dos Santos), deu Cr$ 4 mil (quatro mil cruzeiros, o dinheiro daqueles tempos) de entrada, mais 30 parcelas de Cr$ 432,65, para a União Financeira (Contrato 008/021/0 com o carnê preservado até hoje, como a cópia da NF.

No banco do passageiro, ao lado do seu Manuca, um jovem de 20 anos, louquinho para me acelerar e mostrar meu ronco pelas ruas da cidade, se exibir para os amigos e paquerar as moças nos bailes, que eram embalados pelo som da Jovem Guarda. Mas eu senti que o meu dono nunca deixaria isso acontecer (ainda bem, sabem como são os jovens, né?). Ele era um “casca dura” e, mesmo com poucos minutos de uso, já tinha muito ciúme de mim, seu bem maior, conseguido com muito suor, trabalhando na antiga COSIPA (Companhia Siderúrgica Paulista, inaugura pelo menos três vezes, uma delas pelo então presidente da França da época, Charles de Gaulle).

O jovem não entendia aquele ciúme e a intolerância o pai, que não gostava nem de sair na chuva com o Fuscão. E, por isso, quebrou o compromisso de ajudar o pai a pagar minhas prestações. Ficaram sem se falar algum tempo e eu muito triste por ser o pivô daquele desentendimento. Tempos depois, conseguindo um emprego, o filho do seu Manduca comprou outro Fusca. Não como eu, mas um simples 1.300, ano 1969, que ele enfeitou, colocando talas largas, som de primeira, luz negra, rebaixou e saia por Santos e São Vicente paquerando as moças.

Eu só saia nos finais de semana. Fora isso, ficava dentro da garagem, sob uma lona e só ligavam o meu motor em ocasiões especiais, como aquela viagem, em 1973, quando levei seu Manuca e sua esposa até Estância, uma pequena cidade no estado de Sergipe, a terra deles. Foi uma viagem cansativa, mas  eu me comportei muito bem nos 30 dias das férias.

Naquele mesmo ano, o filho do casal se casou e seu Manuca me emprestou para ele, que foi passar a lua de mel em Campos do Jordão. Não senti frio nenhum lá no alto da Mantiqueira.

Só o seu Manuca

Depois disso eu passei a ser uso exclusivo do seu Manuca. Vivíamos viajando por todo o Litoral de São Paulo. Também participei de casamentos, batizados e, até para velórios e enterros, levei meu dono. Qualquer lugar que a família fosse, lá estava eu, oferecendo meus “préstimos”, sempre com meu belo ronco de Fuscão (quem lembra dele?) e conforto.

O tempo foi passando e eu superado por carros modernos lançados no mercado. Mas vi como o seu Manuca me amava, tinha confiança em mim e nunca me trocou por nenhum desses modelos com air bag, freio a disco, motores eletrônicos e outras modernidades. Ele me mantinha sempre em ordem, com revisões, pneus novos, suspensão cuidada. E eu sempre retribuindo sua confiança. Sei lá onde eu iria parar, caso ele resolvesse se livrar de mim. Depois de tantos anos de amizade, jamais aceitaria ser descartado.

Bem que o filho sugeriu que o pai me trocasse por um carro mais novo. Ele sempre rejeitou a ideia. O tempo passou e, em 2006, aos 82 anos, seu Manduca se foi, lamentando que nos últimos tempos já não conseguia mais sair comigo, para os nossos passeios pela Baixada Santista.

Naquela hora o futuro me preocupava. Eu não sabia o que poderia acontecer comigo. Fiquei lá, parado, e meio abandonado na garagem do seu Manuca, enquanto a família aguardava a conclusão do inventário para decidir meu destino. Eu sabia que tinha um monte de gente interessada em mim. Bonitão, bem cuidado, era um sucesso. Tinha um vizinho que não parava de atormentar a viúva. Coitada, não sabia mais o que falar para ele, que mencionava uma conversa com seu Manuca: “ele prometeu que me venderia o Fuscão”.

Ninguém ouvira falar naquilo e, como morto não fala, e nada por escrito apareceu, o vizinho foi convidado a desaparecer da porta da casa da viúva. Por enquanto eu não seria vendido. Quando tudo parecia se normalizar, a esposa do seu Manuca faleceu, em 2007. Entrei em parafuso, minha vez chegara. E pensava onde iria parar? Meu novo dono ia cuidar bem de mim? Vou ser usado para passeio ou Táxi Mirim (lembram-se dele?)? Vou ser desmontado e vendido aos pedaços? Apesar de ser Fuscão, tive vontade de chorar ao pensar nessas coisas.

Fiquei três meses ao abandono, Mas, um dia, uma luz no fim do túnel. O filho seu Manduca passou por uma banca de jornal onde viu a revista Fusca & Cia, com reportagem falando de mim e de todo a família Volkswagen. Havia outras revistas que ele devorava dia e noite. Ele me descobrira e eu sentia que meu destino não era ter uma placa de Vende-se/Tratar com o dono no parabrisas.

Conversando com a sua irmã sobre o que fazer com o carro, ela votou pela venda. Mas o Bruno, neto do seu Manuca esbravejou: vender o Fuscão do vô, nunca!!! De jeito nenhum. Ele faz parte da família e aqui vai ficar.

Senti-me o Fuscão mais feliz do mundo. O filhão comprou a parte da irmã, na partilha do inventário, e me colocou em uma oficina onde passei nove meses, por uma profunda restauração. Senti que tinha voltado a 1971, estava novinho em folha.

Minha fotos, aquelas do “antes e depois”, provavam que eu voltara aos bons tempos, apesar de alguns milhares de quilômetros rodados, com motor refeito, câmbio revisado. Tudo graças ao seu Manuca, que me amava e sempre cuidou bem de mim.

Pois eu fazia parte da sua vida, da sua família, Por isso colocaram uma placa na tampa do meu porta luvas que me orgulha muito. Ela diz: Homenagem a um herói que formou uma família, amou a todos e, em especial a esse Fusca (Eu).  Manuca”,

Uma tristeza

Bruno, o neto do seu Manuca, herdeiro natural do Fuscão e defensor da sua permanência na família, a deixou em 2015 e nem chegou a aproveitar muito o Fuscão.

Edelzio Costa Pina é aquele filho que admira e cobiçava o carro, desde a saída da concessionária. Ele é  que mantém o Fuscão do seu Manuca “nos trincs”, que ao ponto de evita sair com ele nos dias de chuva, fez algumas transformações no carro. Colocou alguns acessórios, rodas, escapamento, estofamento e outros. Eu, chicolelis, não consegui saber do Fuscão se ele gostou das modificações, mas é nítido que ele está feliz por saber que mais duas gerações na família, não vêm a hora de sentar na frente do seu volante

 

“Hoje, olhando diariamente o Fuscão, na nossa garagem, sinto uma emoção muito forte – diz Edelzio que idealizou este texto. A lembrança do meu pai me dá um nó na garganta. Ele, que migrou do Nordeste, foi um exemplo para nossa família. Além de seus filhos e netos, tem três bisnetos, o Guilherme, o Gabriel e o Gustavo, que prometem curtir o Fuscão Manuca (o carro agora tem esse nome), como nosso querido velho o fez por 35 anos”.

Ao ouvir isso, juro que ouvi o Fusca Manuca dar um toque de alegria na sua buzina.